UM RISCO INCALCULÁVEL: COOPERATIVAS HABITACIONAIS TRAVESTIDAS DE INCORPORADORAS

UM RISCO INCALCULÁVEL: COOPERATIVAS HABITACIONAIS TRAVESTIDAS DE INCORPORADORAS

Por Diego Amaral

 

O mercado imobiliário de Goiânia tende a crescer consideravelmente nos próximos anos. Os números da Associação das Empresas do mercado imobiliário – ADEMI-GO, confirmam essa informação. Na verdade, a tendência de crescimento desse segmento não é apenas em Goiânia, mas sim em todo o território nacional.

 

Com esse crescimento, que já podemos considerar uma realidade do mercado, vemos um número considerável de lançamentos imobiliários via cooperativas habitacionais. E é aí que pode conter um perigo para o pretenso consumidor, que iludido com a oferta de um metro quadrado menor, pode se aventurar no mercado pela via da cooperativa, nem sempre adequada.

 

As cooperativas, encontram-se disciplinadas no ordenamento pátrio pela Lei nº 5.764/71, a qual foi recepcionada parcialmente pela Constituição Federal de 1988.

 

Nos termos dos artigos 3º e seguintes da Lei nº 5.764/71, pode-se verificar que as Cooperativas são constituídas visando a prestação de serviços aos seus associados, os quais reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum, sem objetivo de lucro, podendo adotar por objeto qualquer gênero de serviço.

 

Tais dispositivos legais se referem às Cooperativas como sociedade de pessoas, com forma e natureza jurídica própria, de natureza civil, não sujeitas à falência.

 

Particularidades

 

As cooperativas possuem especificidades que as caracterizam e diferenciam de outras formas societárias, conforme se verifica do art. 4º e correlatos incisos da Lei nº 5.764/71. Esses elementos essenciais constituem desdobramentos dos princípios básicos estabelecidos pelas primeiras cooperativas e encontram-se expressamente relacionados no art. 1.094 do Código Civil Brasileiro.

 

Adicionalmente aos elementos essenciais trazidos para a caracterização das cooperativas, a legislação estabelece requisitos formais para sua constituição e funcionamento. Há pelo menos três elementos básicos indispensáveis para se poder concluir pela existência de verdadeira Cooperativa Habitacional: a) sua criação na forma prevista na lei (art.5º, inciso XVIII, da Constituição Federal), observando-se os requisitos formais de constituição exigidos pela Lei nº 5.764/71; b) a subscrição de quotas-partes do capital social pelos cooperados; e a c) existência e o efetivo controle, pelos cooperados, dos três órgãos sociais internos básicos da Cooperativa.

 

Por essa razão, as cooperativas habitacionais, enquanto viabilizadoras de empreendimentos habitacionais de interesse social, usufruem de benefícios concedidos pelas Prefeituras Municipais a essa modalidade de empreendimento (benefícios tributários).

 

Ainda, as cooperativas habitacionais não estão submetidas a controle administrativo desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, bem como não estão submetidos seus empreendimentos imobiliários à regulamentação da Lei nº 4.591/64, aplicável apenas às incorporações imobiliárias.

 

Também vigorava o entendimento de que às cooperativas habitacionais, quando devidamente caracterizadas, não se aplicariam as disposições da Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor).

 

Acertadamente, recentemente, a fim de dar proteção ao cooperado que adquire uma unidade habitacional via cooperativa, o STJ editou a súmula 602, recentíssima no ordenamento jurídico, que estabelece que: O Código de Defesa do Consumidor é aplicável aos empreendimentos habitacionais promovidos pelas sociedades cooperativas.

 

A edição dessa súmula foi um avanço na proteção do consumidor, que por vezes ficava abandonado, como por exemplo nos casos dos conhecidos empreendimentos habitacionais realizados pela Cooperativa Habitacional dos Bancários de São Paulo – Bancoop.

 

Contribuição dos cooperados

 

Em se tratando de Cooperativa Habitacional, os cooperados se unem ou a ela aderem, para juntos conseguirem o que sozinhos não conseguiriam. Assim, visam, com a formação gradativa de poupança conjunta, a obtenção de meios para a aquisição de um imóvel para a sua moradia, a um preço de custo. A Cooperativa, no caso, mediante a contribuição dos cooperados, basicamente adquire o terreno onde se executará a obra, contrata uma Construtora para a sua realização, e posteriormente providencia a transferência dos imóveis construídos para o nome dos cooperados.

 

A saída do cooperado pode se dar por demissão, eliminação ou exclusão, nas hipóteses previstas na lei e nos estatutos. Importante frisar que, nesse caso inexiste possibilidade de rescisão contratual/distratos e condições de devolução das importâncias pagas pelo cooperado, pelo menos até esse momento. A justiça pode começar a ver essa questão diferente após a edição da súmula 602, como comentado.

 

A Cooperativa Habitacional pode ter sido criada para encobrir o exercício de uma atividade empresarial lucrativa, sem o cumprimento dos requisitos legais. Assim, pode estar a) servindo de fachada para o exercício da atividade de incorporação imobiliária, sem o cumprimento prévio dos requisitos exigidos pelo art. 32 da Lei nº4591/64; b) servindo de fachada para a negociação de parcelas de loteamento ou desmembramento do solo para fins urbanos, sem o cumprimento dos requisitos prévios exigidos pela Lei nº 6766/79; c) servindo de fachada para o exercício da atividade de consórcio de bens imóveis, sem a prévia e devida autorização do Banco Central do Brasil; ou ainda d) servindo de fachada para o exercício da atividade de captação antecipada de poupança popular, sem a prévia e devida autorização do Ministério da Justiça ou controle da CVM. A presença de quaisquer uma destas atividades exclui necessariamente a presença de verdadeira Cooperativa Habitacional.

 

Percebe-se a distorção no funcionamento de Cooperativas Habitacionais quando há o desvio de finalidade que ocorre em razão da atuação ilícita ou imprópria de seus dirigentes, ou ainda o desvio de finalidade inscrito no próprio estatuto social, que define objetivos societários estranhos à própria noção de cooperativa habitacional – como, por exemplo, objetivos empresariais, voltados à obtenção de lucro pela produção e circulação de bens ligados ao setor habitacional, o que é totalmente vedado pela legislação que regula a matéria.

 

Nesse texto nos interessa a hipótese de distorção no funcionamento das cooperativas habitacionais, que consistente no desvio de finalidade em estabelecer à sociedade objetivos incompatíveis com uma cooperativa habitacional, utilizando-a para encobrir o exercício de uma atividade empresarial específica, tais como a incorporação imobiliária.

 

Indícios de intenção fraudulenta

 

Nesse sentido, constituem indícios relevantes da intenção fraudulenta dos fundadores de cooperativas habitacionais, a impossibilidade de verificação das condições fundamentais anteriormente elencadas, de modo que sua atuação demonstre um evidente desvio de finalidade, como, exemplificativamente:

 

• Aferição de lucro por determinados cooperados e/ou dirigentes da cooperativa, ou ainda por terceiros, estranhos à sociedade;

 

• Inexistência efetiva dos órgãos sociais, ou a impossibilidade de real ingerência dos cooperados nas deliberações;

 

• Inexistência do intuitu personae na relação mantida entre os cooperados e a cooperativa, muitas vezes caracterizada pela oferta pública das unidades autônomas a quaisquer terceiros.

 

Importante esclarecer que, ainda que não constitua sua finalidade, é possível que a cooperativa gere lucro no desenvolvimento de suas atividades, em virtude de um resultado positivo após determinado período, em que o montante correspondente às receitas superou as estimativas de despesas gerando as designadas sobras de caixa.

 

No entanto, tais recursos devem ter a destinação definida pelos cooperados, não sendo admissível a adoção de medidas visando a obtenção de receitas desvinculadas do pagamento de despesas futuras e principalmente para ganhos pessoais, que é o que infelizmente por vezes acontece.

 

Incorporação imobiliária

 

Especificamente no tocante à sua comparação com a incorporação imobiliária, tem-se que a atividade do incorporador se afasta substancialmente dos princípios norteadores das cooperativas habitacionais. Isto porque a natureza da atividade do incorporador não pode prescindir da obtenção de lucro, mediante a promoção e comercialização de unidades autônomas, sendo desenvolvida por conta e risco do incorporador.

 

Tais unidades autônomas, por sua vez, são transmitidas aos adquirentes, a título de venda e compra ou de promessa de venda e compra, por um preço superior ao de custo, assegurando assim o lucro do incorporador. Ainda, o adquirente, consumidor, para fins da legislação consumerista, não se torna parte da empresa incorporadora, nem tem ingerência sobre suas decisões e nem divide o risco da atividade com o empreendedor.

 

Em sentido oposto, nos empreendimentos desenvolvidos por cooperativas habitacionais não haveria que se falar em aferição de lucro, mas sim na atenuação de despesas por meio da conjugação de esforços convergentes. Nesse sentido, os cooperados arcam tão somente com os custos da empreitada, e desempenham importante papel de gestão e fiscalização da consecução do objetivo social. Tais benefícios são equacionados com a responsabilidade dos cooperados por eventuais prejuízos e dívidas da cooperativa.

 

Algumas Cooperativas Habitacionais valem-se das prerrogativas conferidas a este tipo de sociedade (benefícios e subsídios públicos, ausência de controle administrativa e desnecessidade de adequação do empreendimento aos termos da lei 4.591/64), quando, na verdade, trata-se de uma incorporação imobiliária sob a “fachada” de uma cooperativa habitacional, com claro desvio de finalidade, pois a intenção é aferição de lucros por determinados cooperados ou dirigentes da cooperativa.

 

Nesta feita, uma vez identificados elementos de uma incorporação imobiliária, necessariamente se exclui a existência de uma cooperativa habitacional, independentemente da designação utilizada para o desenvolvimento e comercialização do empreendimento, não havendo hipótese de coexistência de tais institutos (Cooperativa e Incorporação Imobiliária).

 

Por essa razão, a oferta ampla e irrestrita da aquisição de unidades autônomas mediante o ingresso em uma cooperativa habitacional caminha em sentindo oposto aos fundamentos do instituto, que tem por finalidade reunir um grupo de pessoas específicas, de determinada categoria e personificar seus anseios de, com o direcionamento de esforços comuns, alcançarem determinado objetivo. Coaduna-se, no entanto, com a prática da incorporação imobiliária, que em seu conceito já pressupõe a oferta pública, obedecendo para tanto a extensa regulamentação supramencionada.

 

As cooperativas utilizadas por investidores, simples e puramente para se travestirem de cooperados para obterem vantagens que possuem de direito estabelecem um verdadeiro ato atentatório àqueles que caminham de forma correta, com a utilização da incorporação convencional plena, seja enquanto consumidor ou empreendedor.

 

Diego Amaral

 

Advogado, sócio do escritório Dias & Amaral Advogados, Presidente da Comissão de Direito Imobiliário e Urbanístico da OAB/GO, gestões 2015/2018 e 2019/2021, Professor Universitário e de Pós-Graduação em Direito Imobiliário

 

Fonte: Assessoria

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